Dia desses, em sala de aula do Ensino Médio, discutindo com os alunos sobre a ocupação do Piauí pelas fazendas de gado, o assunto descambou para a questão fundiária e as terras que compunham o patrimônio das antigas Fazendas Nacionais do Piauí. Na oportunidade, comentei sobre o misterioso “desaparecimento” de grande parte das terras que antes pertenciam ao Estado — portanto, ao povo brasileiro —, procurando incitá-los à percepção do processo de grilagem e do roubo de gado que historicamente marcou a relação entre latifundiários do sul do estado e aquelas terras que antes faziam parte do patrimônio da União. Para minha surpresa — e, aparentemente, somente minha — um dos alunos comentou: “— Se as terras estavam ali mesmo, sem nenhuma serventia, os caras estão certos. Eu teria feito a mesma coisa.”
Saí da escola com essa frase na cabeça e uma dúvida me inquietando: o que leva um adolescente brasileiro, instruído e formado dentro de princípios éticos e cristãos, a encarar a corrupção, o roubo escandaloso de terras, a apropriação indevida e imoral de um patrimônio público como coisa natural e até exemplo de esperteza? Imediatamente, recordei um discurso proferido por Rui Barbosa na tribuna do Senado, do qual peço licença para citar um pequeno trecho:
“A injustiça desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza sob todas as formas.”
Estas palavras, enunciadas no início do século passado, não poderiam traduzir melhor a realidade brasileira. Há poucos anos, o Brasil assistiu ao desenrolar de um dos maiores escândalos de corrupção do país, que culminou com a cassação do presidente Fernando Collor de Melo; hoje, Collor é senador da República. Há poucos meses, Paulo Maluf encontrava-se preso, acusado pelo desvio de milhões de dólares dos cofres públicos que ainda repousam em paraísos fiscais espalhados pelo mundo; hoje, Maluf é deputado federal. No ano de 2006, as reuniões das comissões parlamentares de inquérito que investigavam esquemas de corrupção nos Correios e na compra de deputados conseguiram bater a audiência das novelas de horário nobre, diante de espectadores estupefatos que, a cada dia, assistiam a um festival de baixarias e de revelações escandalosas jamais vistas na política brasileira. Resultado: grande parte dos envolvidos foi premiada com a reeleição; Marcos Valério, administrador da roubalheira, encontra-se solto e esquecido. Esquecida também já foi aquela quadrilha ligada à jogatina, desbaratada pela Polícia Federal na Operação Furacão, que denunciou um esquema de corrupção e bandidagem envolvendo bicheiros, policiais, advogados, deputados (é claro!) e até (meu Deus!) juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores.
Tudo isso me veio à lembrança enquanto dirigia de volta para casa, e foi o suficiente pra me tirar o sono. Fui tomado repentinamente por uma vontade desgraçada de ser idiota, de ligar o rádio e terminar meu trajeto curtindo Calcinha Preta, Limão com Mel, o Créu e outras merdas congêneres, feliz e despreocupado da vida. Infelizmente não deu. Desde aquele momento até agora, como podem ver, me angustia a possibilidade de assistir à formação de uma geração que corre o risco de tornar-se tão ou mais cínica e corrupta do que a que a precedeu. A impunidade está sendo naturalizada no Brasil, por conta de fatores que me esquivo de aqui mencionar a fim de evitar processo e cadeia, pois sou pobre e sem parentes importantes, condição que me enquadra perfeitamente no perfil daqueles sobre os quais a Justiça brasileira exerce o peso de sua espada magnânima.
Há algum tempo aprendi a perceber que as relações de poder não se situam apenas no âmbito do Estado e das grandes instituições, mas também — e principalmente — em nossas próprias relações cotidianas. Por conta disso, tornou-se mais clara em mim a constatação angustiante de que a sociedade brasileira transformou em gesto natural o hábito de furar uma fila, porque todo mundo fura; de estacionar um carro na calçada, porque todo mundo estaciona; de não devolver um troco errado (mesmo sabendo que quem pagará aquele dinheiro será a funcionária ou o funcionário que cometeu o erro e ganha um salário que sequer dá para sobreviver), pois quem devolve troco errado é otário; de jogar garrafas, papel e outras porcarias na rua, porque a rua já está mesmo cheia de lixo e uma garrafinha a mais não vai acabar com o mundo; de pressionar (com a conivência dos pais, minha Nossa Senhora!) diretores e professores para dar um jeitinho nas notas de fim de ano, a fim de evitar uma reprovação; de encetar todas as artimanhas no sentido de encontrar nos outros as razões para os próprios erros, porque “os outros que se danem e o importante é tirar o meu da reta”... e encerro os exemplos por aqui, porque a simples menção dessas coisas agrava sobremaneira minhas neuroses.
Como todo mundo rouba neste país, peço licença a quem conseguiu ler este texto até aqui, para roubar mais um pouquinho de seu tempo, voltando a citar Rui Barbosa. As palavras transcritas abaixo foram enunciadas há quase um século, mas parece que foram ditas hoje pela manhã. No mais, peço desculpas por meu pessimismo, pela minha falta de humor e de jeitinho brasileiro, por estas palavras tão pra baixo. A todos, desejo muita Ordem e muito Progresso. Vivas ao Brasil e à sua permissividade varonil! Agora, aspas ao velho Rui:
Sinto vergonha de mim por ter sido educador de parte desse povo, por ter batalhado sempre pela justiça, por compactuar com a honestidade, por primar pela verdade e por ver este povo já chamado varonil enveredar pelo caminho da desonra. Sinto vergonha de mim por ter feito parte de uma era que lutou pela democracia, pela liberdade de ser e ter que entregar aos meus filhos, simples e abominavelmente, a derrota das virtudes pelos vícios, a ausência da sensatez no julgamento da verdade, a negligência com a família, célula-mater da sociedade, a demasiada preocupação com o “eu” feliz a qualquer custo, buscando a tal “felicidade” em caminhos eivados de desrespeito para com o seu próximo. Tenho vergonha de mim pela passividade em ouvir, sem despejar o meu verbo, a tantas desculpas ditadas pelo orgulho e vaidade, a tanta falta de humildade para reconhecer um erro cometido, a tantos “floreios” para justificar atos criminosos, a tanta relutância em esquecer a antiga posição de sempre “contestar”, voltar atrás e mudar o futuro. Tenho vergonha de mim pois faço parte de um povo que não reconheço, enveredado por caminhos que não quero percorrer... Tenho vergonha da minha impotência, da minha falta de garra, das minhas desilusões e do meu cansaço. Não tenho para onde ir, pois amo este meu chão, vibro ao ouvir o meu Hino e jamais usei a minha Bandeira para enxugar o meu suor ou enrolar meu corpo na pecaminosa manifestação de nacionalidade. Ao lado da vergonha de mim, tenho tanta pena de ti, povo brasileiro! De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. (Rui Barbosa, 1914)